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Jovem cria App para ajudar idosos analfabetos

Num canto apertado de um quarto partilhado com os dois irmãos mais novos, João desenhava o futuro com os dedos sobre a tela rachada de um telemóvel antigo. Tinha apenas 17 anos, vivia num bairro periférico da cidade da Praia e estudava num liceu público onde muitas vezes faltava luz, internet e, às vezes, até cadeiras para os alunos. Mas o que não faltava em João era inquietação. Desde pequeno, adorava desmontar rádios e montar cabos. Mas foi a avó dele, Dona Albertina — uma senhora analfabeta de 76 anos — que o empurrou, sem saber, para o que viria a ser sua maior criação. 


Dona Albertina criava João desde os 5 anos, depois que a mãe teve que emigrar. Ela não sabia ler nem escrever, mas sabia de cor rezas, histórias antigas, músicas de roda e como preparar remédios naturais que curavam com folha e fé. Um dia, ela pediu a João que lesse uma mensagem no celular. Era do banco. Ela estava desconfiada de algo, mas não sabia o que dizia. João leu. Era uma tentativa de golpe. E naquele momento, ele percebeu: sua avó, como milhares de idosos em Cabo Verde e em tantos outros países africanos, estava vulnerável no mundo digital simplesmente porque não sabia ler.

Essa ideia ficou martelando na cabeça dele. Quantas Dona Albertinas andavam por aí, recebendo mensagens falsas, sendo enganadas, vivendo à margem da tecnologia? E se existisse uma maneira de ajudar? Foi aí que João começou a rabiscar uma ideia: criar uma aplicação simples, intuitiva, que funcionasse com voz, ícones, símbolos visuais, e que traduzisse textos automaticamente em áudio, para que idosos analfabetos pudessem entender o que estavam recebendo no WhatsApp, nos SMS, ou mesmo em anúncios do governo.

Ele não tinha computador, então usava o telemóvel do amigo para assistir aulas de programação no YouTube durante o intervalo das aulas. Passava madrugadas aprendendo sobre design acessível, comandos por voz e leitura automática. Montou o primeiro protótipo em um programa gratuito. Chamou de “Ouvi+”. A lógica era simples: o idoso clicava em um botão com o desenho de uma orelha e lia em voz alta o texto da tela. A app, então, lia tudo em crioulo ou português — com vozes lentas, calmas, adaptadas. Também havia uma função de respostas prontas, com ícones como “Sim”, “Não”, “Ajuda”, “Chamar familiar”, entre outros.


No início, testou com a avó. Ela chorou ao ouvir a voz do aplicativo dizendo: “Mensagem de sua filha: mamãe, estou com saudades.” Foi a primeira vez que entendeu uma mensagem direto da tela, sem precisar de ninguém.

João expandiu os testes. Levou para a igreja do bairro, onde muitos idosos participavam de atividades. O sucesso foi imediato. Um deles disse:

— Agora já posso ler a Bíblia no celular… com os ouvidos.

A notícia da aplicação chegou até uma incubadora de jovens talentos tecnológicos no país. João foi convidado a apresentar o projeto. Ganhou uma bolsa de estudos, acesso a um computador e mentoria para aprimorar a aplicação. Em poucos meses, o “Ouvi+” já estava disponível para Android, com suporte técnico e melhorias constantes.

A aplicação virou uma ferramenta de inclusão digital. Escolas passaram a usar com alunos mais velhos. ONGs começaram a recomendar para comunidades rurais. O Ministério da Família e Inclusão Social entrou em contato para implementar em programas de apoio ao idoso. João, antes apenas um estudante de liceu sem recursos, agora era reconhecido como um jovem inovador com impacto social real. 

Mas ele não parou por aí. Criou um manual em papel com símbolos e imagens que acompanham o uso da aplicação para idosos que têm medo de tecnologia. E iniciou oficinas em bairros periféricos para ensinar netos a ajudarem os avós com o uso do app — unindo gerações através da tecnologia. 

João diz que seu maior sonho não é ficar rico com a aplicação, mas ver um mundo onde ninguém fique excluído por não ter aprendido a ler. 

— A leitura transforma. Mas enquanto ela não chega, a tecnologia pode ajudar a dar voz a quem nunca teve. E ninguém deveria ser enganado por não saber decifrar palavras.

Hoje, o “Ouvi+” já ajudou mais de 20 mil idosos em várias regiões de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. E João segue aprimorando. Sonha com versões em línguas africanas locais. Com parcerias internacionais. Mas seu maior orgulho ainda é quando chega em casa, se senta ao lado de Dona Albertina, e vê ela sorrindo ao ouvir: “Mensagem recebida: vovó, você é a razão de tudo isso.”
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